domingo, 10 de fevereiro de 2008


Não quando se passa dos limites. Quem malha pesado todos os dias e não sabe viver sem isso pode estar fazendo mal à própria saúde

Os músculos do corpo humano funcion
am como uma espécie de motor bioquímico. Quanto maior o esforço, mais consomem oxigênio e mais intensa é a eliminação de subprodutos das reações químicas provocadas pelo metabolismo, como o dióxido de carbono e o ácido láctico. A cada aceleração desse motor, as fibras musculares sofrem lesões microscópicas que, em reação ao trauma, se regeneram em forma mais resistente. São resultantes desse processo os músculos inchados dos saradões. A fonte de energia desse processo todo é uma substância chamada trifosfato de adenosina. Os estudiosos dos processos bioquímicos do organismo conhecem-na pela sigla ATP, mas os leigos podem chamá-la simplesmente de... Gracyanne Barbosa. A dançarina sul-mato-grossense de 25 anos é um prodígio de aumento muscular. Aos 15 anos, já media 1,75 metro, mas pesava apenas 45 quilos. Com dedicação incondicional aos exercícios, moldou o corpo e se transformou quase numa fisiculturista. Faz uma hora diária de exercícios aeróbicos pesados, mais três sessões semanais de musculatura de nível profissional: enfrenta quatro séries de oito agachamentos segurando uma barra de ferro de 180 quilos, anda 30 metros agachando-se a cada passo com 70 quilos nas costas, e no leg press, o aparelho para exercitar as coxas, empurra uma plataforma com meia tonelada.

Na imagem mental que faz de si mesma, porém, Gracyann
e parece ainda ser a adolescente magrinha. Ela não vê a hora de passar o Carnaval para recuperar o peso habitual de 74 quilos, em boa parte de músculos poderosos - seu índice de gordura é de apenas 6%. Para desfilar como rainha da bateria da escola de samba Mangueira, a dançarina perdeu 6 quilos, numa espécie de concessão ao gosto popular. "Mulher musculosa não vende bem na avenida", diz seu treinador, Xande Negão. Gracyanne está na fronteira que separa a salutar e, no seu caso, espetacularmente bem-sucedida disciplina corporal do comportamento compulsivo, quando a rotina de exercícios vira um vício incontrolável. "Eu sei que o exagero é perigoso, que preciso de limites para não me machucar", diz. "Mas me acho viciada mesmo. Se tenho tempo, malho até aos domingos e feriados."

A turma dos malhadores pesados está em expansão. Para o paulista José Henrique Borghi, 42 anos, semana feliz é aquela em que o dia começa às 4h30 da manhã em cima de uma bicicleta, com ele pronto para percorrer 90 quilômetros de estrada, a distância entre São Paulo e Guarujá. No intervalo do almoço, ele dá seqüência com mais sessenta minutos de esforço na pista ou na piscina. Isso tudo é repetido durante seis dias, com transpiração extra no fim de semana, quando o tempo de dedicação chega a três horas consecutivas. Seu extenso currículo de atleta amador já soma dez provas de Ironman. Para os não inici
ados, Ironman é a exaustiva competição em que homens e mulheres enfrentam uma seqüência ininterrupta de 3 800 metros de natação, 180 quilômetros de ciclismo e 42 de corrida. "Nos dois ou três meses que antecedem a prova, adoto uma rotina de atleta. É um treinamento vigorosíssimo. Viro um monge do esporte", descreve Borghi, que nas horas não vagas dirige uma renomada agência de publicidade. Nos outros nove meses do ano, ele desacelera o ritmo para uma hora e meia de bicicleta, mais uma hora de corrida todo dia, com eventuais mergulhos na piscina. Diz ele: "Quando fico sem exercício me sinto o último dos homens. É até constrangedor".

Para a preguiçosa maioria, calçar um par de tênis e caminhar até o parque mais próximo é sinônimo de sacrifício. Para uma minoria crescente, não é apenas questão de saúde ou de gosto. É necessidade imperativa, quase uma compulsão na qual se somam duas sensações poderosamente prazerosas - com a forma física alcançada e com o domínio da vontade sobre o corpo. São, em geral, pessoas perfeccionistas e competitivas, que estabelecem metas ambiciosas para si mesmas e as incorporam à sua rotina. "Faz parte da minha vida como comer e respirar. Não dá para ficar sem", diz a fisioterapeuta carioca Malu Guimarães. Aos 33 anos, ela pega pesado de segunda a sábado por quase duas horas. Quando viaja, só se hospeda em hotéis que têm sala de ginástica. "Passei um mês em São Francisco e me matriculei em uma academia de lá. De manhã meu namorado ia passear e eu ia malhar", conta. Substituir pela malhação atividades consideradas agradáveis pela maioria é um sinal comum aos viciados em exercícios. "Recentemente deixei de viajar com a família para Fortaleza porque não conseguiria ficar dez dias sem treinar", conforma-se o estudante mineiro Thiago César Moraes, 19 anos, pelo menos duas horas diárias na academia de seu condomínio, de segunda a sábado. "Musculação está em primeiro lugar na minha vida. É quase uma doença", diz Moraes, que em viagens curtas lev
a na mochila seu halter desmontável de 40 quilos. "Sei que o treino foi bom quando saio dolorido. Se não sinto nada depois, no dia seguinte me esforço em dobro."

Da mesma forma que ceder às inclinações naturais do corpo pode levar a excessos ("Vou passar o fim de semana inteiro esparramado no sofá e as atividades físicas consistirão em clicar o controle remoto da TV e ingerir comidas bem calóricas"), não é preciso muito mais do que bom senso para perceber quando há exagero nos exercícios. Segundo um padrão internacional, quem não é atleta profissional e faz mais de seis horas semanais de atividades físicas puxadas já se enquadra entre os excessivos. Na rede de academias Reebok Sports Club, 32% dos alunos são considerados "hard users", quer dizer, freqüentam a academia mais de 100 vezes ao ano, ou em média três vezes por semana pelo menos. Há cinco anos o número era 30% menor. Um sinal evidente dos exageros se vê na multidão de maratonistas amadores - sem sentido metafórico, maratona quer dizer exatamente 42.195 metros - que competem nas ruas das grandes cidades. Treinador de corridas há quase quinze anos, Marcos Paulo Reis tinha no início da carreira 10% de seus então oitenta alunos adeptos da maratona. Hoje, eles chegam a quase 20% dos seus atuais 900 alunos. Seu colega treinador Mário Sérgio Andrade Silva, que orienta cerca de 1.000 esportistas inscritos na Run&ampFun, conta que no começo seu maior desafio era estimular os preguiçosos. "Hoje é o contrário: temos mais trabalho segurando quem exagera do que dando duro em quem relaxa", compara. "Tem homem que começa a treinar aos 40 anos achando que vai voltar ao corpo dos 18, que pode ganhar dos outros da mesma idade e até dos mais novos, que seu temp
o sempre pode ser mais baixo, que dá para fazer uma maratona por ano ou até mais. Alguns passam um mês sentindo dor antes de contar para o treinador."

Testar os limites do corpo, como sabem os profissionais, não tem nada de natural. A provação aumenta a propensão a contusões, contrações, luxações, fissuras e, sempre, dor. "É difícil encontrar um atleta de elite que não tenha se machucado. Nós somos treinados para suportar a dor", constata o maratonista campeão Marilson dos Santos. "Mas quem faz esporte só por prazer não deveria sentir dor alguma." A questão, naturalmente, é que a dor é compensada por sensações positivas. "Comecei a treinar porque tinha muito glúteo, e braço e perna finos. Fiz balé, vôlei, handebol, e nada dava jeito, então parti para a musculação. Em pouco tempo comecei a ver resultado: meu braço tomando forma, meu abdômen formando gominho, meu ombro ficando fibrado. Fui pegando gosto. Minha mãe não entendia por que eu ia tanto, mas, depois de um certo tempo, duas vezes por semana não têm mais efeito nenhum", conta Renata Lopes, 27 anos, seis sessões semanais de malhação pesada. "Não vou para a academia perder tempo. Não vou lá para fazer fisioterapia. Faço a supersérie, que só termina com a fadiga total do músculo", descreve. Por fadiga total, entenda-se não conseguir levantar nem mais um alfinete. "Não me considero viciada, mas não vivo sem minha musculação", afir
ma Renata, criadora das comunidades no Orkut "Sou mulher e amo musculação" (17.370 membros), "Sou musculosa e feminina" (1.405 membros) e "Treino total" (2.140 membros).

A dona-de-casa carioca Fátima Gantus, de 48 anos, gasta entre 600 e 700 reais por mês com suplementos. Acompanha lançamentos, troca informações com seu personal trainer e com o dono da loja de que é cliente fiel. "Quem me olha jura que tomo mais do que suplementos. Já fiz exame de sangue para provar que não", defende-se Fátima, 1,61 metro de altura, 58 quilos e apenas 8% de gordura no corpo. Em um regime de duas horas e meia a três horas intensas na academia cinco vezes por semana, ela faz agachamentos com 100 quilos, 800 abdominais e exercícios para perna com até 240 quilos. Suas coxas parecem toras esculpidas em algum material extraterrestre. "Digo que 50% do meu corpo é meu, 50% é do meu personal", orgulha-se a ex-professora de educação física. Contornos de halterofilista podem não ter aprovação universal, mas para quem os busca não existe o conceito de músculos - nem de sacrifícios - em excesso: mais é sempre melhor.

Com o pé engessado e muletas, o paulistano Erik Aoki Biasetto, 31 anos, físico de super-herói de desenho animado, se esgueirava até a academia de madrugada para conseguir entrar e treinar escondido. "Meu pé estava ruim, mas o resto do corpo estava funcionando. Não tinha por que ficar parado", justifica. "Fico bastante ansioso quando estou machucado. Já faz seis meses que estou com um problema no joelho, mas dou minhas corridinhas, faço um pouco de bicicleta", confessa o administrador de empresas paulista Flavio Castanheira Junior, 40 anos, que contabiliza um tempo máximo sem exercício de quatro meses, em virtude de uma fascite plantar (inflamação no revestimento dos músculos da sola do pé, problema em evidente expansão). "Estava me preparando para uma maratona e demorei um mês e meio para procurar o médico. Acabei tendo de operar no início de 2006, mas em outubro já fiz uma prova", conta ele.

"Estamos vendo uma substituição dos acidentados em carros por traumatizados em esporte", analisa Flavio Murachovsky, ortopedista do Hospital Albert Einstein. Pelos seus cálculos, 40% do atendimento diário no consultório hoje é relacionado a lesões esportivas, númer
o duas vezes maior do que há cinco anos. "Tem paciente para quem eu mostro o raio X com a lesão e ainda assim ele diz que não vai parar. Ou faz cirurgia e logo já está correndo 60 quilômetros por semana", alarma-se o médico. A designer Carla Giorgi Ferreira, 42 anos, é do tipo que não se impressiona com lesões: de tipóia, com a clavícula fraturada por causa de um acidente durante um treinamento de ciclismo, ela participou, escondido, de um treino de corrida. Apenas vinte dias depois de outro acidente, em que bateu a cabe&ampcc venceu um triatlon com distâncias olímpicas. "Não respeito nem médico nem treinador. Quando está no meio do processo de treino, você quer mais. É viciante", confessa. O psiquiatra Marco Aurélio Monteiro Peluso, do Hospital das Clínicas de São Paulo, classifica comportamentos desse tipo como indício da compulsão por exercícios. "A grande maioria das pessoas que faz esporte regularmente, quando pára, sente falta. Não dorme tão bem, fica mais nervosa, sente tensão muscular. Mas, em geral, essas pessoas, se sofrem alguma lesão, conseguem parar de treinar por um tempo. Considera-se viciado aquele que não pára nem quando o excesso de esporte lhe é prejudicial", diz. "São pessoas que fecham seu leque de atividades sociais: não vão a happy hour com amigos, passam menos horas com a família, dormem menos, tudo para poder treinar mais", diz.

Sacrificar o corpo para salvar a alma ou disciplinar a mente é uma prática tão antiga quanto a civilização, presente na maioria das religiões e dos sistemas filosóficos. Quem se acaba para aprimorar o próprio corpo pode ter o mesmo e eufórico sentimento de autocontrole - além de uma certa superioridade moral - de um monge que jejua ou se flagela. "Minha mãe não acredita que eu deixo de jantar no domingo à noite para ir à academia. Mas domingo é o melhor dia da semana, estou descansado, cheio de energia", indigna-se Biasetto (o malhador de muletas), que testa seu fôlego em duas sessões diárias de uma hora e meia (corrida e abdominais) e uma hora (musculação). "Para mim, treinar é sagrado. Quem não tem a mesma disciplina simplesmente não entende", desabafa. Casos extremos de excesso de atividade física são diagnosticados como vigorexia, um transtorno psíquico irmão da anorexia, em que a pessoa nunca se satisfaz com o tamanho de seus músculos. Não há, no entanto, um diagnóstico preciso para as muitas situações que se encaixam entre a vigorexia e a atividade pesada mas saudável. "Quem exagera mas não chega a extremos não tem, ao que se sabe até agora, um transtorno psiquiátrico, uma compulsão ou dependência", diz o psiquiatra Peluso.

Provavelmente a definição mais precisa para o vício em exercícios seja como o da pornografia: todo mundo sabe o que é quando vê. Da mesma maneira, a prova de uma convivência não conflituosa com o próprio corpo pode ser puramente empírica: a pessoa se olha no espelho e dá um sorrisinho interior, mesmo murchando a barriga, estufando o peito e anotando uma série de outras áreas suscetíveis a melhorias. Já o contrário pode provocar um sofrimento psíquico que clama por compreensão e, eventualmente, ajuda. "A fase da vida em que eu mais gostei do meu corpo foi aos 18 anos. Toda semana eu anotava minhas medidas, da panturrilha ao antebraço, para ver se eu tinha aumentado de tamanho. Se não crescia, não saía de casa. Achava um absurdo minhas amigas me chamarem para sair com aquela perna tão fina", recorda a nutricionista fluminense Nathalia Alves, 22 anos, que no momento se acha "um esqueleto" por ter ficado cinco meses sem treinar a parte superior do corpo em virtude de uma cirurgia plástica. Ela pesa 55 quilos e tem 1,60 metro de altura, medidas que a maioria das mulheres consideraria perfeitas. "Meu maior medo é emagrecer, por isso não faço exercício aeróbico, só musculação", diz Nathalia, presença certa na academia de segunda a sábado. Quando dá, vai aos domingos também.

O exercício começa a fazer mal para o corpo quando...

 a carga para o corpo fica tão pesada e é repetida com tanta freqüência que há um aumento exagerado dos níveis do hormônio cortisol, responsável pelos sintomas físicos típicos do stress - os mais perigosos deles são o aumento da pressão sanguínea e o enfraquecimento do sistema imunológico

 a serotonina e a endorfina produzidas pelo corpo durante a malhação são as únicas fontes de prazer da pessoa, que, fora isso, vive em constante melancolia - com sono e sem apetite para comida e até para o sexo.

...e começa a atrapalhar a vida quando a pessoa...

 abandona atividades que antes lhe davam prazer e compromissos sociais para ganhar mais tempo na academia

 encurta as viagens de passeio para voltar logo ao regime de exercícios

 se irrita com os comentários de que ela malha demais

 desobedece aos médicos e ignora lesões para não sair da forma

 se submete a dietas protéicas radicais e se entope de suplementos

 nunca acha que está na forma física ideal

 considera sedentário o resto da humanidade

 deixa de malhar um único dia e acha que pôs todo o trabalho físico a perder, sentindo-se gorda e fraca.

Bel Moherdaui e Suzana Villaverde
Veja On-line - Noticias/ SP - Musculação - 04/02/2008

1 comentários:

Unknown disse...

Muito boa a reportagem
=D